Acordara resoluto.
Antes mesmo de abrir os olhos, no momento em que teve consciência de estar desperto,se sentira compelido a contar tudo à esposa. O segredo sufocava-o há anos. Não aguentava mais.
Encontrou-a na cozinha, preparando o café da manhã.
- Marta, senta aqui. tenho que te contar algo...
A esposa sentou-se, ressabiada. Havia tempos não via o marido tão taciturno. Imaginou histórias de amantes, desfalques, crimes esquecidos e que voltavam à tona. Mas superariam tudo, juntos. Sempre fora a rocha do casamento, doze anos, não iria desabar agora.
Mas nada a preparara para a confidência de seu companheiro.
- Vera, eu tenho que te falar a verdade. Eu sou... o Jegão!
Disse, e ficou em silêncio, observando o efeito que a revelação causara em sua esposa. Dona Marta, mãe de duas belas jovens universitárias, esposa fiel, não sabia o que falar. Enfim, depois de um tempo que pareceram horas, perguntou hesitante:
- Firmino, você quer dizer... "O" Jegão?
- É, Marta. "O" Jegão, o cara das histórias que você ouve desde sempre, entre meus amigos. Jegão. Sou eu!
Entre os amigos, companheiros desde os tempos de colegial, as anedotas do Jegão eram repetidas à exaustão. Era sempre citado, o companheiro desajeitado, simplório, que entrava nas maiores encrencas, e era motivo de riso da galera. As esposas, de tanto ouvir os mesmos casos, sabiam de cor as desventuras do pobre. Mas, até então, eram histórias de um personagem sem rosto.
Certa vez, no início dos anos 80, durante uma aula de matemática com um professor um tanto maluco, estava o Firmino atento à marcha de uma formiga que subia na parede, quando o professor, vendo-o de boca aberta, comentou com a classe como parecia meio, assim, bobão, não, não era bem isso... era um... Jegão!
Adolescentes são maus, e quanto mais se recusa o apelido, mais o sadismo se desenvolve. No metrô, era normal a cena dos companheiros gritarem de longe "Jegão", e, ao invés de não responder e deixar o povo do metrô imaginar quem seria o eqüino, este respondia, todo envergonhado "Pô, gente, pára de ficar me chamando de Jegão!"... e lá se ia o vagão cheio de gente olhando pro Firmino e balançando a cabeça imaginando que parecia um jegão mesmo...
Para piorar, desenvolvera um TOC, não bastava-lhe ver um objeto, tinha que tamborilar os dedos neste para sossegar uma compulsão vinda não sabe-se de onde. Os amigos exultavam. Visitas a museus eram um terror...
- Jegão, olha que legal esse quadro... pena que não pode tocar, né?
- E esse vaso, Jegão... olha só esse vaso raro!
O Jegue quase morria! Quantas broncas dos seguranças! Só por conta de um batuquezinho nas estátuas? Injusto...
Crente, criado dentro da igreja, quase enfartou na viagem de formatura, com uma Fanta "batizada":
- Gente, passa essa latinha de Fanta pra mim também!
- Jegão, você não vai gostar, não tá boa...
- Dá aí, pô... humm... é, tá diferente... péra ai... tá boa, sim!
- Jegão, você tomou tudo? JEGÃO, VOCÊ TOMOU TUDO! TAVA COM VODCA! VOCÊ VIROU GUT-GUT, TUDO?
- Ai meu Deus! Tinha álcool? Ai meu Deus!
- Agora vai pro inferno, Jegããããããão!
- NÃÃÃÃÃÃOOOO!
No cursinho, sonhava ter se livrado do apelido. Ledo engano. Foi na primeira semana de aula. Passava pela porta de uma classe despreocupado, lá dentro dois amigos do colégio, o Rosa e o Caverna. Sentados lá no fundão, ao verem-no passar no corredor, gritaram a plenos pulmões "JEGÃO"! A classe toda olhou para trás, no susto, achando serem os dois malucos. Não é que o pobre volta até a porta e pede em voz alta "Pô, gente. Pára com isso! Aqui ninguém sabe que eu sou Jegão"!
Foi o que bastou. Ficou Jegão no cursinho também.
E as histórias do Jegão se multiplicavam. Dizia-se que fora convocado pras forças armadas, na cavalaria. Servira como montaria, lógico.
Quando casou, fez um pedido aos amigos. Que continuassem a comentar as histórias do Jegão, mas escondessem das esposas a identidade do protagonista. Tanto insistiu, que a identidade secreta do Jegue ficou em segredo do mulherio. As esposas riam com as histórias, mas não relacionavem o nome à pessoa. E tudo corria muito bem.
Mas agora, decidira-se a abrir para o mundo seu alter-ego quadrúpede. Que todos o chamassem de Jegão, e daí, era um animal até que nobre, trabalhador. E sempre podiam achar que era alguma alusão ao seu órgão sexual, seria até um elogio!
A esposa relutou a princípio, as histórias do Jegão eram sempre contadas, na roda de amigos, quase sempre com um final bem embaraçoso. Mas o Firmino bateu o pé, e tornou-se Jegão assumido.
O que ninguém sabe é que ele ainda odeia o apelido. Mas o fato é que Dona Marta havia resolvido, depois de ler uma crônica do Verissimo, que precisavam de apelidos, para a saúde do casamento. Tratar-se por "amor" era muito impessoal. E já havia arrumado apelidos para os dois.
Essa resolução da esposa foi o empurrão para assumir o tratamento do colegial abertamente.
Afinal, Jegão, apesar dos pesares, até que passa.
"Fifi" não suportaria jamais!
Ônibus 4010-32 (cont.)
Há 3 meses
3 comentários:
Meu , sua história é ótima, o curso de letras fez bem p/ vc, cê tá escrevendo prá caraio, que imaginação!!! Te cuida, Paulo Coelho !!!
Huahuahuahua
Valeu!
Quem sabe a gente não escreve uma biblia do Delta Energético e ganha uns milhõeszinhos??
huahauhauhuhu
Agora que eu me toquei!
Paulo Coelho o seu CU!
Postar um comentário